Monday, September 19, 2011

O dia em que o padeiro fechou.

Escuro. Apenas um vazio escuro. Era tudo quanto conseguia ver, por entre os grãos de poeira ensolarados da montra. Prateleiras vazias de pão, mas, como sempre, cheias da característica neve trigueira. Os sacos brancos, de uma alvura desconhecida deste tempo presente, a adornar os agora enormes cestos de viga.
Um cheiro a lembrança ainda paira no ar cá fora. Mas nada mais lembra a pão lá dentro. Aquela magia que alimenta, aqueles sabores que salvam almas perdidas em náufrago. Aquelas memórias de um ouro macio a derreter lentamente, como um fim de dia sobre uma estrada paciente....
Tudo isto desaparece lentamente. Pedaço a pedaço. Mas sem aquela insubstituível névoa que emerge a ferver quando abria a minha alma a um acto social tão sagrado e familiar, como o que tantas vezes me fez acordar a hora inumanas, a seguir em directas só com objectivo, a partilhar ideias, emoções, segredos...
"Terá acontecido algo?" Sem resposta, tento mais uma vez. Numa teimosia saudável, tão humana, tão minha. Sem sucesso. De relance, tento enganar a sombra com um soslaio mais rápido que a velocidade da cusquice, mas nada, novamente.
A manhã perde a alegria com esta constatação. O pequeno-almoço perde dimensão. O dia perde luz. Bom, não é que perca a luminosidade, como parece acontecer em certas cidades onde as paredes absorvem a luz e transformam-na em sombra. Não. É mais como se a própria luz perdesse a sua alegria, as suas cores. A sua dimensão, torna-se mais "achatada". Mas sem se perder de si própria. Só de mim. Um pouquinho. Só...
O regresso, agora menos marcado por aquela ânsia tão deliciosa e matinal, faz-se sem sobressaltos. Um pouco mais contemplativo. Não sei bem explicar porquê. "Faz-se", por assim dizer.
E, num momento indistinto, tudo parece ter mudado no mundo. E o mundo parece ter decidido mudar sem nós.
Foi assim que me senti, nesse dia.
No dia em que o padeiro fechou.

Friday, September 16, 2011

Estrada de fogo

E hoje, uma vez mais, dei por mim a descer essa estrada de fogo. Sentindo o toque metálico como se fosse descalço ... Quente. Pegajoso. Doloroso. Viciante. Agora faz parte de mim. Ou antes - penso - farei eu parte "dele". Ele? Entranha-se em mim, gera-se um desapego, uma completa abnegação do "eu" e entrego-me a um reflexo. A uma miragem etérea, vinda bem do fundo das minhas lembranças, existência incerta, gerada no ar aquecido pelos tempos... Desertos, oásis sem fim...
O gotejar do meu suor acorda-me. Desperta-me deste marasmo delicioso, onde tantas vezes me deixo ir. A descer uma estrada de fogo. Onde sinto o seu suave toque metálico que queima e faz parte de mim.

Sexopolis

Olhando para a cidade, deste ponto mais elevado, consegui perceber os seus tons dourados, de semelhança gémea às lembranças outonais... Da estrada elevava-se um som, um rumor... Daquele tipo que desperta sentimentos, que levam a outros sentimentos e lembranças de um sexo animal... O rubor começa a fervilhar, ao de leve na minha pele. E esta agora já não é minha. É uma pele, outra que não a que tenho. É minha, mas não só.... É uma estrada, daquelas que nos conduz a sonhos, memórias... Num serpentear que me faz embala, entorpece, mas faz vibrar... Num êngodo de curva, num manejo de corpos. O corpo curvado ao desejo dos tempos... Escuta... http://youtu.be/a93_5AXZx18 Ele não pára por aqui.... Eleva-se. E volta a descer... Até nós. De novo. A nós o que é de todos. A todos o que sinto agora... E o que sinto é o meu corpo a retorcer-se. A minha mandinga vem ao de cima, o meu rebolejo anseia por se libertar... Deliro numa visão de fogo, suo um calor que vem de sempre, de dentro... Penso se não o terei herdado de uma fogosa noite, perdida lá longe no éter de uma celebração bem libertina. Pergunto-me se não será reflexo de um fulgor de sexo, que desce geneticamente nas longas e sinuosas escadas de uma muito particular construção geneticamente assombroso, ao bom estilo de Gaudi ou de uma tão fornicada Guernica. Lembranças de guerra... guerras de suor, de sangue... e muita, mas muita degustação corporal... Que sentimento de posse! Que vingança mais gulosa, com tão doce-azedo travo a vergonha... Mil línguas, num lânguido e manipuloso sibilar de curvas... de altos... de baixos... tanto por fora... e bem, bem dentro...... Mil suores, mil fluídos, mil engolidos, mil.... Que cor. Que vibrar. O reflexo do suor. O teu olhar.

É uma estrada. Uma estrada com um rumor que emerge. Um rumor que é dourado, vermelho, que é sangue. E que faz lembrar... http://youtu.be/rg3IY2A_f70 O Outono chegou.

Tuesday, September 06, 2011

Prenuncio de chuva...

Antes, ainda se viam pessoas conhecidas nos carros ao lado do nosso. Rostos familiares, vagamente encontrados em memórias espontâneas, perdidos no tempo e encontrados ali mesmo, ao lado. Mesmo não conhecendo as pessoas de lado algum, elas pareciam pertencer aquele sítio. Faziam sentido ali. Pareciam ser parte daquele momento, instante, espaço.

Hoje em dia, parece que as pessoas são estranhas. Parece que há um país imenso que se cruza em todas as estradas, a qualquer hora do dia, em que o meu lugar de sempre me parece agora tão estranho. Talvez nunca antes tenha olhado para os outros ao meu lado com olhos de ver. Talvez o dia de hoje, sem luz intensa, sem delírios visuais, me tenha deixado ver. Talvez a hora fosse outra, não sei...

Talvez hoje não tivesse aquela (falsa?) sensação de segurança que me cobria e protegia. E que me possibilitava, mesmo sem olhar, ver - ou achar que via - quem estava ao meu lado e sabê-lo instantaneamente, que eram pessoas que faziam parte daquele cenário e que, portanto, não despoletavam alertas no meu organismo tranquilo. Pertenciam ali e ali deveriam estar. Tão simples quanto isso.

Mas quando sem esperar, dei por mim a olhar, vi que as coisas já não eram assim. Eu já não sou o mesmo. O meu país continua cada vez mais cinzento. Os carros mudaram. As memórias vão-se esvanecendo. E o que vejo já não é real. Ou a realidade já não é o que eu quero ver...