Sunday, April 16, 2006

Do fim do dia ao início da noite...

Voltei a sentir medo. Hoje, como já não acontecia há muito tempo, há demasiado para me sentir à vontade. Há muito tempo que me habituei a conviver com os meus medos... de certa forma, até me fazem companhia.. Mas hoje, hoje foi diferente... hoje receei por aqueles que me eram mais queridos, não saber se algo de menos bom iria acontecer com algum deles, tinha aquela profunda e angustiante sensação que ia perder algo de importante, quase tão importante como a vida! Aquela sensação que ou nos esvazia ou nos enche de escuro... que nos deixa com uma sensação de que estamos perdidos no meio de um grande nada... Que me deixou amedrontado, a tremer de uma forma que outrora me era familiar, quando vivia assustado com todo o que receava... Permitam-me fazer um pequeno salto...
Porque me fascina tanto o período que vai do fim do dia ao início da noite? Será que é porque tudo me aparece despido? Nú e crú? Verdadeiro, sem ilusões provenientes de calores excessivos; apenas aquela cor com que as coisas nascem e morrem? Será que é pela ausência de uma luz em si, substituída por uma espécie luz neutra? ... Será que é porque tudo me parece meio igual, sem grandes distinções? As montanhas parecem recortes de negro no horizonte, as pessoas vultos indistintos... Será por isso que me seduz tanto, por me poder dar a hipótese de descansar a vista, de ver as coisas como são e não como as anseio ver? É fantástico, nesta altura quando a luz passa a ser diferente aos meus olhos começo a viajar, é mágico os lugares na minha memória onde consigo ir parar... quando começa a faltar aquela luz quente, amarela, que lentamente dá lugar à luz que os olhos interiores vêem, azulada na base, branca na emoção, começo a relembrar todos os lugares quentes da minha existência feliz, todos aqueles recantos esquecidos com o tempo que só o fim do tempo me poderia relembrar... e sinto-me pleno, viajando por esses frágeis pedaços de existência que compõem o puzzle do meu ser. Com essa luz vem o desejo de me fundir, com tudo o que existe à minha volta; de transpor tudo o que o meu ser físico me impõe diariamente; ser mais... além de hoje... eterno... pleno...
Mas não menos me seduz o breu que se abate no infinito com o passar do tempo; a luz azulada dá lugar à noite com luz, aquela fracção temporal em que os olhos ainda conseguem fingir ver além do que se lhes apresenta imediatamente... E não menos me assusta a escuridão. Antes da sua chegada sinto-me feliz, com ela posso sentir-me à vontade – como se a escuridão entrasse dentro de mim e o meu interior extravasasse livre, e descomprometido, para fora a escuridão que existe dentro de cada um de nós existe, escuridão para escuridão.. essa hipótese de personificação de um algo interior num imenso exterior... E nada assustado percorro esse caminho insólito de frio e estalidos crepitantes, sem qualquer receio, completamente em paz... E no meio da minha viagem dei comigo a entrar na noite, céu escuro que queimava nuvens de um vermelho-rosa cor de fogo, o ar sabia-me a lágrimas quando em lágrimas se transformava ao chegar a minha face... e a noite chorava de um cinza lavado, que em nada feria o verde dos prados que sem luzes ofuscantes me serviam um manjar visual que me faz delirar – a eterna atracção pelo cinzento escuro de um céu de personalidade forte com a eterna presença da esperança a seus pés, e a ladear-me... E no meio disso, lembrei-me do medo que me invadiu mais cedo. E embrenhado neste quando de cores contraditórias e algo confusas, senti o calor de uma vontade optimista de arranjar remendos para todos os buracos, que continuamente foram marcando a minha existência, nas memórias latentes do meu alegre ser que outrora fora feliz... Tudo isto por me teres mostrado que consigo ser eu se, e apenas se, acreditar em mim. E que só assim poderei sonhar estar contigo.

3 comments:

P said...

(És sempre uma suave transição entre uma luz laranja e um azul eléctrico.entre um torpor e um choque.)

concordo. é no final do dia que tudo é verdadeiro. e as tuas palavras são sempre finais de tarde.

:)

Anonymous said...

Os verdadeiros artistas não fazem arte de propósito.
Os pintores, escultores, escritores... apenas materializam
(em imagens, formas, palavras...) tentativas desesperadas de
se entenderem intimamente. Se me perguntares se te entendi
digo-te que não (era muita ousadia). Em vez disso entendi-me...acho
que acabas de transformar um fim de tarde em ARTE!

Z said...

Aquela sensação que ou nos esvazia ou nos enche de escuro (...) O ar sabia-me a lágrimas (...) Tudo isto por me teres mostrado que consigo ser eu se, e apenas se, acreditar em mim. E que só assim poderei sonhar estar contigo. (...)

Quando gosto de um texto, há sempre frases que me arrepiam. E estas foram as tais. Escreves muito bem, vou voltar cá para te ler e tomarei a liberdade Ambrósio ;) de linkar o teu blog ao meu.
Gostei muito.